7 de dez. de 2011

Deserto Amarelo



Sou de ti o mais novo escravo
Tocaste-me na mais plena imensidão
É em tua pura carne que me lavo
Dela própria, a eterna perdição

Sois em mim o certo e o errado
Tens em posse nobre coração
E eu, a ele atrelado
Sou prova do amor tão sagrado
Que explode a cada geração

E assim, pássaro ferido
Sem ti me comparo a uma trema
Me encontro deveras perdido
Só tu me desperta o sentido
És indescritível poema

E essa sede, quão desmedida
De poder-te sempre um pouco mais
Toca fundo a latente ferida
Que de partes já não se satisfaz

Ao mirar-te de relance já não creio
És miragem, utopia, devaneio
Pois que a imagem, tão funesta, da partida
Alimenta terrivelmente meu receio

E me pego então a questionar
Inda n’ânsia silente do deserto
Qual a cor de tão intenso verbo amar?
Como tê-lo de ausente tão concreto?



Eterno, imenso e belo:
O amor é um deserto
amarelo.




"e dele deserta,
quem, cego, na certa
não entende que AMAR
é um ELO..."




Thuan B. Carvalho


; assim como era no princípio, agora e sempre.

3 de nov. de 2011

Ações e Sensações



Passa,
E eu invento
O vento.

Anda,
E eu espanto
O pranto.

Dorme,
E o aconchego
Chega.

Clama,
E me acende
A chama.

Voa,
Vai feito nave
Ave.

Chamo,
E não me escuta
Bruta.

Cala,
E se não ouço
Fala.

Maga,
Se sou duende
Prende.

Bruxa,
Se me afasto
Puxa.

Artista,
Lutando esgrima
Rima.

Tento
Prendê-la em frase
Quase!

Leve,
Grão de poeira
Esgueira.

Próxima,
Sinto seu cheiro
Inteiro.

Morde,
A boca intensa
Tensa.

Sopra,
E de arrepio
Rio.

Navega,
E não firma o leme
Treme.

Goza,
E se entrega
Rega;

Prosa,
E o céu de azul:
Rosa.


Thuan B. Carvalho

17 de set. de 2011

não chores mais, não.



(...) mas princesa, não chores não;
Que teu choro me parte, me quebra
Transforma meu pássaro em pedra
E sufoca.

Ei, amor, não chores não;
Que teu choro é o prelúdio da morte
É o som de uma faca no corte
E corta.

Vida, por favor, não chores não;
Que teu sorriso é a prece que rogo
Em teu choro eu somente me afogo
E me ardo.

Mas paixão, não chores mais não;
Que tua lágrima é dos venenos o mais mortal
Em contato com o ar me é letal
E castiga.

Ei, existência, não chores não;
Que teu choro molha os dias nefastos
Faz babel, interrompem-se os astros
E me rasga.

Sereia, por favor, não chores não;
Que teu choro é o meu mortuário
É o som que me lembra do horário
Um nocaute.


Psiu, mulher, não chores não;
Que teu choro me lança da ponte
É a água que escorre da fonte
E não sacia.

Mas deusa, por favor, não chores mais não;
Que teu sorriso é o sinal que me ala
E cada lágrima que teu olhar exala
Me aproxima do chão.






Thuan Bigonha de Carvalho.

2 de set. de 2011

A Mulher Tinteiro



Vem sem medo, insólita, e em sua expiração carrega a certeza de que, ato próximo, inspirará. Não se confunde jamais, líquido heterogêneo de uma mistura que, por mais materialmente separada que possa parecer, é monofásica.


Possui quatro fases, essa personificação lunar: Percorre a terra, durante o princípio do dia, com seu corpo ardente e inconstante, varrendo o choro das crianças e trazendo o amanhecer aos olhos dos animais; Extenuada, dorme e afoga seus cabelos no mar durante a tarde fresca, tornando-se a si um cardume de emoções que, pesadamente, baqueia o fundo do oceano e ilumina a profundeza de além-mar; Seu instante é breve, e tão logo laqueou as órbitas, resplandece num vôo clamando combate, exigindo do crepúsculo mais atitude do que - como ela mesma diz - “simplesmente levar o sol e trazer a lua”, rasando pelos confins da Terra e de todas as Terras, pintando estrelas no céu de todos os reinos com a energia que jamais lhe desampara; Até que então, fase derradeira, suspira e já não é mais suspiro, desabrocha o sentimento que já não tem, resume a madrugada em silêncio e colóquio, e os pássaros que não ouvimos na alvorada - são todos ela - espectro sublime, enobrecendo o sono do mundo com a ária que deriva do farfalhar das asas de sua alma.


Anormal, atípica, irregular, desnivela a ampulheta dos corações dispostos, altera a freqüência do tempo e do espaço, desmantela a noção de gravidade do momento que até então era grave, e que, após sua passagem, flutua entorpecido e pacífico, inativamente agravitacional.



Assim, borralheira e gata, princesa e feiticeira, emoldura minha abstração insípida, contorna meu semblante vago; e chove, no meio desse tornado de emoções sobrepostas, nada mais do que a certeza de que é ela a cor que dá aspecto aos versos que rabisco.




Thuan Bigonha de Carvalho.

4 de ago. de 2011

A Terra em que é Proibido Sofrer




Na terra em que é proibido sofrer, a morte vem a cavalo.
As placas nas cidades dão bom-dia e boa-noite, e indicam o melhor lugar para se sentar sob uma fresca e prazerosa sombra. Os dias muito quentes e muito frios passam rápido, assim como os dias de saudade; enquanto os dias agradáveis passam lentos - um pássaro que plana numa tarde de segunda-feira.

Na terra em que é proibido sofrer, a idade é experiência.
Não há chá que não cure, não há raça que não se misture, nem amor que não dure. Lá, de madrugada, é possível ouvir o som do mundo, sua leve respiração enquanto adormece lentamente, entrecortada de quando em vez pelo pio de uma coruja.
(reza a lenda que quem faz amor de madrugada na terra em que é proibido sofrer ouve os sons de um mundo diferente, mas isso é só uma lenda.)

Na terra em que é proibido sofrer, os sinais são de esperança.

Quem espera sempre alcança, todo mundo indé criança, e a vingança não passa de um prato que não se come nunca. O planeta gira ao contrário, o pesar é imaginário, e hospitais são canários que devolvem a alma ao infinito.

Reis, magos, bruxas, anões, dragões, gnomos, cavaleiros, amazonas, duendes, elfos e anciãos já se perderam incontáveis vezes ao procurar a terra em que é proibido sofrer; sem saber que ela não passa de um X incrustado no mapa da alma de cada um.
Ou seja, para encontrar a terra em que é proibido sofrer, basta encontrar a si.







Thuan Bigonha de Carvalho

Afinal, quanto custa?



Um choro de saudade,
Um sopro de verdade,
Andar pela cidade; quanto custa?
Amor na flor da idade,
Chuva de fim de tarde,
Tensão que mansa invade - e que assusta!
Quanto custa?
Um pingo de piedade,
Boiar sem densidade,
Ser a própria gravidade! Quanto custa?
Diz! Quanto custa?!
Que eu vendo a mocidade,
Leilôo a tempestade,
Dispenso a qualidade, tão fajuta!
Depeno essa maldade,
Transbordo de bondade,
Encaro a cristandade - vou à luta!

E se acaso, dia funesto
Seu Deus, quão desonesto!
Quiser a minha vida
Por achar a troca injusta;
Darei-a, não interessa
Para o amor não terei pressa
Se me for respondido
Quanto custa.


Thuan Bigonha de Carvalho

30 de jun. de 2011

Translucidez




O casarão, a quem olhasse à primeira vista, encontrava-se inteiramente na escuridão. As dezenas de janelas de ferro frio abrigavam em si a intensa cor da noite, exceto pela última delas, a mais alta - visão minuciosa, que continha em si uma nesga de luz bruxuleante. E no interior daquele cômodo, à luz de três velas, ele escrevia.


***


... Corria como nunca o havia feito, deixando atrás de si o grito insuperável das noites sombrias, que somente uma noite como aquelas poderia proferir. Sua respiração era dificultada pela densidade do ar naquela altura, mas nem a escassez de oxigênio a fazia parar. Nada a faria.



Os agouros noturnos a perseguiam em forma de grito, mote que a fez parar, colocar as mãos na cabeça, massagear a têmpora por um breve instante, com os olhos castanhos fechados, tentando sentir qualquer coisa que a livrasse daquela sensação ruim de estar sendo seguida, de estar confrontando a realidade, de estar cansada por remar contra a maré.



***


Prazeroso, ele conseguiu extrair sua mente do papel por um instante, sentindo fluírem por seu corpo todas aquelas energias que ele já conhecia, e deu uma olhada narcisista no calo em sua mão, deixando a pena respingar levemente no papel onde escrevia. Levantou-se da cadeira, afastou-se da escrivaninha e foi até a janela, pensando ter ouvido um som estranho da pequena reserva florestal que margeava sua casa. Feliz por notar na noite a magia que queria transcrever, tornou a mergulhar a pena no tinteiro.


***


... Um corvo crocitou ao longe simultaneamente ao momento em que um espinho penetrava-lhe a sola calejada dos pés, fazendo com que ela se sentasse num tronco oco, vendo o sangue escorrer lentamente do pequeno orifício. Eu mereço isso, pensou. EU MEREÇO TUDO ISSO! E com tal convicção, abraçou a dor que a noite lhe afligia com a mesma afeição com que se abraça um amigo íntimo, e sentindo-se mais forte, recomeçou a caminhar, já podendo ver ao longe as pilastras brancas da entrada do paraíso. Ou inferno. Um lobo emitiu um uivo triste, e aquela nuvem enorme e cinza insistia em manter o luar por detrás de si, alimentando-se de sua luz para parecer mais forte, mais intensa.



***


Um arrepio percorreu-lhe o corpo, quando ouviu um uivo forte saindo da noite, invadindo a janela do cômodo onde se encontrava, e eriçando seu corpo por inteiro. Levantou-se pela segunda vez, o copo de scotch em mãos, e encaminhou-se até a janela. A noite permanecia intocável como uma pintura, mas o rapaz tinha a sensação de que algo se movia ali. Chacoalhou a cabeça, tentando afastar a imagem dela, que novamente começava a lhe acossar. Levantou por um instante a foto na estante, recolocando-a virada para baixo após uma breve admirada. Aquela não era uma lembrança que lhe fazia bem. Freou o ímpeto egoístico que lhe surgia com mais uma golada de scotch, tomou a pena novamente em mãos e sentiu a mente se distanciar novamente, enquanto a tinta acariciava o papel.


***


...O momento último de percepção pareceu-lhe afagar a alma, e a caminhada pareceu transcorrer, dali para frente, como se certa fosse, como se a guerra com os astros fosse incomum e necessária. Ao finalmente conseguir ver os contornos da casa, apertou a carta dele contra o peito, sentindo as lágrimas já começarem a brotar. Não. Não iria fraquejar agora. Durou dois anos sua briga interior, mas alguém, enfim, havia vencido. Empurrou forte o portão de ferro da entrada, encarando de igual as criaturas da noite que ali se encontravam, estátuas sem rosto, cinzas e sem luz, todas com o olhar ferino indagando sua presença ali.



Conhecedora do local, retirou das vestes o pedaço de metal que havia trazido consigo, e traçou um círculo ao redor de si, delineando em seguida traços disformes dentro do mesmo, percorrendo toda a extensão da terra, passando por sob seus pés, mas não excedendo o espaço circular, que agora recebia uma fina cortina de luz.



Ao som dos agouros da noite, deixou-se movimentar sem qualquer coordenação, enquanto lentamente recebia marcas azuis por todo o corpo, sentindo cada pedaço de si esquentar na medida em que o sangue fluía mais rápido. E ali, no auge do fluxo sanguíneo, retirou o espinho que lhe mostrara a dificuldade do caminho, e que ela havia guardado, fazendo com ele um pequeno furo na palma da mão direita, pressionando-a em seguida contra a terra fria. Girou as mãos até onde a flexibilidade de seu braço permitiu, e ao erguer os olhos, viu cada estátua ganhar vida, abrir as asas e subir tão alto quanto as nuvens, deixando o caminho finalmente livre.



Levantou-se com dificuldade, ergueu o pescoço à última janela da casa, e notou a luz que ali bruxuleava, em contraste com toda a imensidão sem cor que cobria o resto da visão.



***


O suor de suas mãos passava a deixar marcas em seu manuscrito, motivo que o fez parar pela terceira vez. Releu o que já tinha escrito até o momento, sentindo uma estranha familiaridade com aquilo tudo. Não se recordava de onde tinha acendido aquela inspiração, mas tinha certeza de que já a conhecia.


A estranheza do calor que lhe subia naquela madrugada fria fez com que ele enchesse o copo novamente, sentindo que o álcool já influenciava em seu discernimento. A pintura na parede atrás da escrivaninha, sua preferida, que retratava a constelação de Lynx - o Lince, parecia delinear-se num enorme Lince Negro, fitando-o com seus olhos amarelos e censurosos, antevendo o ponto de exclamação do grito de sua alma.


Voltou os olhos para seu manuscrito, que parecia emitir uma energia incomum, sugando sua mente para dentro de si, fazendo com que suas mãos voltassem a, involuntariamente, traçar linhas e formar palavras, que eram sugadas uma a uma para dentro daquela folha de papel. E a pena voltou a cortar o papel.


***


... Seu corpo inteiro tremia à medida em que se aproximava daquela enorme porta. Será que ele lhe perdoaria? Será que toda aquela caminhada, todo aquele sacrifício, valeria realmente a pena? Ele a amara tanto, e ela fizera tão pouco caso. Tinha realmente o direito de estar ali, naquele templo, reclamando um amor que nem sabia se ainda existia? Estaria ela agindo corretamente ao tentar fazer resgatar um sentimento que ela sabia ter existido, e que a arrebatara a ponto de trazê-la até ali?



Sem pensar tanto, para não ter a chance de desistir novamente, levou sua mão direita à porta, apertando a campainha ao passo em que sentia o medo do erro invadir-lhe...



***


Foi extraído novamente de seu texto ao pensar ter ouvido o som da campainha em sua casa, e foi então que finalmente percebeu. Releu o manuscrito pela última vez, incrédulo, entendendo finalmente o que se passava ali. Não estava criando um texto, estava simplesmente expressando, por meio de uma “meia-ficção”, o que ele queria que acontecesse em sua vida. Via ali tudo o que queria ouvir de seu antigo amor, tudo o que desejava que acontecesse, numa miscelânea entre a dolorosa realidade de seu sentimento incompreendido e a utopia dos rituais e dos agouros da noite.


Sentindo as lágrimas escorrerem tímidas e quentes, jogou a garrafa já vazia de seu scotch barato na parede, vendo sua esperança despedaçar-se ali, sentindo que sua alma estava quebrada em mais pedaços do que aqueles vidros que povoavam o chão do cômodo. Amassou o manuscrito com mãos empenhadas, e jogou-o pela janela, sendo a queda do papel frágil contra o atrito eloqüente do vento a última coisa da qual se lembrava antes de cair num sono profundo, insano e inconsciente sobre aquele chão desfragmentado em cacos.


Então, dormindo a sono profundo, não ouviu quando a campainha soou por mais duas vezes.




Thuan Bigonha de Carvalho

15 de jun. de 2011

Ordem e Progresso.




Amanhecia na Rua da Magnólia, e nem mesmo a mais otimista das senhoras, aquela que varria com os olhos a rua três vezes ao dia procurando algo sobre o que comentar - Dona Carmem - era capaz de imaginar o que ocorreria naquele Logradouro.



A Rua da Magnólia existia há pouco tempo, e suas singelas sete casas se espalhavam pela avenida de forma simétrica, uma de cada cor, completando a simetria com a igreja do finzinho da rua.



O ambiente todo, sem falar de uma forma resumida (mesmo porque não há possibilidade alguma de se resumir algo tão resumido), abrangia uma rua, sete casas, uma igreja, uma mercearia, uma banca, duas latas de lixo, uma sorveteria, uma “mini-praça” com três árvores, um canteiro e dois bancos, um correio, uma escola, um cemitério e um botequim.



Dona Francisca, moradora da imponente casa amarela, voltava da mercearia do seu Adão com uma sacolinha contendo três pães de sal e um saquinho de leite. Nhá Isaura varria a rua em frente a sua casa, preço a se pagar por ter o domicílio mais invejado da rua - a desejada casa verde -, que ficava de frente para a praça. “Vô Lauro”, morador da casa azul, já lia o jornal matinal de dentro da sua banca, enquanto sua esposa, Dona Gilda, arrumava-se impecavelmente para a missa das sete. Dona Carmem, viúva com cinco filhos, tomava seu chá da janela branca de sua casa alaranjada; enquanto seu filho mais velho, Joaquim, abria o ruidoso portão do correio que administrava desde a morte de seu pai, Antônio. Gertrudes, mulher de Seu Adão, regava cuidadosamente o jardim nos fundos de sua casa rosa, e falava alegremente ao telefone com Cláudia, sua irmã tão bem falada, que ainda nova recebeu um convite para ser atriz de cinema, indo morar na cidade grande desde então. Padre Honório, que morava nas dependências da igreja, acabava de levantar-se da primeira oração do dia, e ajeitava o local para a missa de logo mais. Heloísa, anfitriã da casa vermelha, dormia a sono pesado, enquanto seu marido, José, já servia a primeira dose de pinga para Seu Zito, o andarilho que dormia num dos bancos da praça desde que a Rua da Magnólia se entendia por rua. Jorge, morador da casa branca, assim como Heloísa, dormia, pretendendo abrir sua sorveteria apenas depois das nove da manhã.



As coisas aconteciam como todo dia, e se um quadro fosse feito da Rua da Magnólia às seis da manhã, ele se confundiria facilmente com a morosidade da realidade, que se diferenciava a cada amanhecer apenas pela quantidade de folhas que caía das árvores. Assim, tal pintura traria em si a beleza morna de uma rua pacata, a serenidade inerente à simplicidade. Até o derradeiro dia oito de agosto.



O barulho ensurdecedor interrompeu toda a magia daquela manhã ensolarada de domingo, fazendo com que toda a rua permanecesse estática por um breve minuto, e no minuto seguinte, todas as cabeças da cidade se voltavam para o centro da praça, de onde subia uma fumaça cinzenta, com cheiro de enxofre.



Dona Carmem, o olhar atento, a certeza de que aquilo certamente renderia ainda mais assunto do que sua suspeita de que Dona Gilda tinha um caso com o Padre Honório, apressou-se à beira da cratera, seguida apenas por Latido, o cãozinho que acompanhava Seu Zito em suas madrugadas na rua. Lentamente, todos os moradores da Rua da Magnólia se aglomeravam ao redor daquele incidente incomum, esperando a fumaça se dissipar para poder ver o que diabos era aquilo. Padre Honório encontrava-se ajoelhado, seu terço firmemente seguro nas mãos, e nos olhos a certeza do fim do mundo, previsto e anunciado para aquele ano por Dom Célio.



Minutos se passaram até que toda aquela tensão se fosse, e a fenda revelou finalmente sua causa: uma caixa simples de madeira, já aberta, contendo uma espécie de máquina. Após calorosa discussão, Seu Zito foi chantageado a descer e pegar o objeto, sendo a ele prometida, por isso, uma garrafa inteira de pinga. Zito desceu no ato, trazendo a caixa para o banco da praça. Do lado de fora, lia-se:




“Vcs akbam de ganhar um passaporte para o futuro. Nessa caixa tá a eficiência junto com a facilidade, pra q vcs ñ precisem mais se estressar, se preocupar, pq ela reduzirá o tempo p/ vcs, e trará mta felicidade e conforto a tds!”




Em apenas um mês, a sorveteria virou lan house, a banca virou Mc Donald’s, o correio faliu, a mercearia virou supermercado, o cemitério precisou de alguém que o administrasse e de mais dois funcionários, o botequim virou boate, a praça ganhou um policial, as árvores viraram eucalipto, Seu Zito foi preso, Padre Honório começou a aceitar em sua igreja apenas quem estava em dia com o dízimo, as casas foram pintadas todas de marrom, a escola ganhou um diretor - Sr. John -, que trouxe consigo da cidade uma imobiliária e uma indústria automobilística, Dona Carmem tornou-se prefeita, seus cinco filhos tornaram-se vereadores, Latido foi atropelado, “Vô Lauro” morreu de Leptospirose, seu filho morreu de cirrose, seu neto morreu de overdose; e a Rua da Magnólia, que num presente não muito distante cheirava a lavanda, passou a ter um cheiro acre de enxofre, inevitável fragrância do futuro.



“mas não se preocupe, você se acostuma!”, dizia todos os dias o homem, o Deus de terno e gravata que fazia sua voz reverberar de dentro daquela misteriosa caixa...




Sabia das coisas, o velho Dom Célio.





Thuan Bigonha de Carvalho

10 de jun. de 2011

Ausência em Três Atos



Ato 1 - O caminho da percepção



Era noite na Floresta dos Séculos, extensa difusão de natureza e seres míticos que se situava na subida árdua do monte que levava Oráculo de Delfos. Ouvia-se cada sussurro, cada farfalhar de folhas carregadas pelo vento, cada pio sepulcral das aves noturnas.


Era julho.


A temperatura acompanhava o ritmo da noite, ambas caindo paulatinamente, valsando ao som cálido do inverno.


Incessantes e sonoros “cracks!” faziam com que o ar congelasse, e toda a floresta prestava atenção naquela energia estranha, aquele cosmo intenso e lancinante, aquele calor tão... humano.


Os passos furtivos se dirigiam ao coração da floresta, que, onde poucos sabiam, situava-se o altar de Cronos, o Deus do Tempo. Reza a lenda que Cronos cedia o tempo, mas comia cada um dos seres que dele usufruíam, demonstrando a efemeridade que lhe é inerente, e que muitas vezes é negligenciada pelos seres viventes.


O caminho até ali era árduo, mas o rapaz, impulsionado pela força que deveras lhe sustentava, enfim o atingiu.


As árvores pareciam ter sido plantadas numa espécie de “reverência” àquele pequeno pedaço de rocha branca, abrindo um clarão inimaginável no meio de uma mata tão densa. Em torno da rocha, três pequenas flores faziam um triângulo, sendo a primeira - uma bromélia - apenas em botão; a segunda - uma rosa - na flor de sua juventude e beleza; e a terceira - um lírio - parecendo ter sido recentemente morta pelo decurso inevitável do tempo.


Foi ali que o rapaz se ajoelhou, a dobra de seu joelho se encaixando perfeitamente na rocha fria; os pés descalços, marcados pela trilha penosa, agora levemente enterrados naquela terra macia; a coluna levemente curvada para frente; os braços, caídos ao lado do tronco, expressando o mais lívido desgosto; o corpo, completamente nu, sentindo cada parte de si com a intensidade do nascer do sol; e a cabeça mirando os céus, deixando que as lágrimas percorressem toda a vereda de sua face e que se misturassem, ato final, com a magia viva do local.


Foi então que sua voz, pela primeira vez, rasgou o silêncio sussurrante da floresta, fazendo vibrar toda a energia do local no ritmo da energia que guiava seu corpo.


- NNNNÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOO!



Ato 2 - O monólogo da ira


- Eu, que nunca quis me ver do avesso, que nunca soube ter cabresto, exijo hoje dos confins do tempo uma explicação detalhada sobre o motivo de tanta ausência! Deito aqui, sob a relva fresca dos campos do desentendimento, toda minha indignação quanto à contradição da passagem do tempo, que se faz efêmera na presença, mas que se veste com a mais maléfica das intenções para frear o ponteiro enquanto os corpos se fazem ausentes!


- Ouvi dizer que é a você, Cronos, que tenho que prestar queixas, e é o que eu vim fazer!


- Não, eu não me importo nem um pouco em sofrer com a “ira dos deuses”, em sentir na pele o gosto amargo de sangue e indeferimento, em me ultrajar sobre o altar da piedade... Contanto que me ouçam! Contanto que aliviem essa chaga que corrói cada vértebra de minh’alma! Essa ausência vil que oprime meus sentidos e me faz fraquejar!


-... Eu nunca exigi nada, nunca ergui minhas mãos um só centímetro acima do limite, nunca bradei aos céus contra a autoridade aflitiva de suas decisões; mas quando senti o néctar divino jorrar dos lábios dela, simplesmente senti esvaírem-se todas as concepções todas as leis, todos os sentidos... EU SINTO! Sinto as pontas das facas que transpõem meu corpo, sinto a sede insaciável consumir meu espírito, sinto o vazio contraditório de me sentir tão cheio, SINTO A AUSÊNCIA DE METADE DE MIM, AGORA QUE CONSEGUI ME SENTIR COMPLETO!


- HAHAHAHAHAHAHAHA! Eu não venho implorar sua clemência, Deus da tirania! Venho cobrar a vida que me foi prometida! Se é verdade que vocês regem o universo, então corrija o desacerto covarde de separar duas almas que são uma só! Leve-me de volta àquela que me governa! Permita que meu encontro estatize os ponteiros! Desacelere esse engenho vil que chamas de tempo! Deixe que eu seja a unidade, deixe que meu “eu” seja!


- É só o que peço. Devolva-me a metade que pertence à minha vida, OU EU DEVOLVO A VOCÊS A METADE INÚTIL QUE TEM SIDO A MINHA!



Ato 3 - O lamúrio das horas


Dizendo isso, o rapaz abriu semicerradamente os olhos, e viu refletir em sua frente dois instrumentos reluzentes: do lado direito, uma adaga com o cabo de prata ornado em rubis, extremamente afiada, com um traçado vermelho em sua ponta que era, indubitavelmente, sangue; do lado esquerdo, um jarro de cristal contendo um líquido verde fumegante em seu interior, engalanado externamente em esmeraldas minuciosamente moldadas.


Analisou os dois objetos, e entendeu.


Pegou a adaga com as duas mãos, mirou contra o próprio peito, e desferiu um golpe certo, que permitiu a penetração do metal quente em sua pele. Sentiu então o corpo todo estremecer, quando ouviu uma melodia vinda das copas das árvores, seu tom descendo levemente pelos galhos, flutuando sobre sua cabeça. Ao olhar para cima, reconheceu o espírito de sua metade ali, pairando em luz, derramando lágrimas e canto sobre sua ferida.


Tentou então voltar atrás, retirar o objeto de seu corpo e desfazer aquela ferida que o levaria ao derradeiro momento.


Em vão.


Ali, deitado de costas sobre o lírio da morte, vendo o espírito de sua amada lamuriar as horas, extenuada, foi que ele entendeu que era impossível voltar atrás.




Pois só sentirá a leveza do tempo aquele que prezar pela vida, e se dispuser a saciar sua sede através do líquido infinito da alma.






Thuan Bigonha de Carvalho.

19 de mai. de 2011

A vida é Longa em Curtas.






Artesão



Sol a pino

Meu dia eu entalho

e o pássaro azul me cumprimenta do galho.





Translação


O dia acelera

E reduz sem parar

é a terra que gira ou somos nós a girar?





Mãos Atadas


Ciganos na esquina

Cantando bem alto

jamais se extrairá o futuro do asfalto.





Atenção


Um homem, atento, observa

O outro, de longe, debocha

sentimentos diversos enquanto a flor desabrocha.





Papel


Na carta amassada

As letras pululam

e entre os borrões de lágrimas amores se juram.





Tinta Fresca


Em meio a tantas cores

São tantos os sabores

deixa eu me pintar de verde com a aquarela do seu coração?





Prazer


Livros abarrotam

A estante da mente

e no balanço da rede a história se acende.





Palhaços


A lona se ergue

O Circo vai partir

e de longe a criança de pés descalços sorri.





Rotina


Os que trabalham por trabalhar

Entediados, se confundem

enquanto o garoto, deitado, procura imagens na nuvem.





Passarela


Sem saber o que se passa

Sem saber se vai passar

a borboleta amarela desfila ao luar.





Coroa


O casal que se beija

Ao tropeçar numa pedra

sempre haverá o outro lado da moeda.





Agir


Já vai, mas tão cedo!

Quem irá te levar?

- o medo.





Volta.


Levado ao hospital

Com séria enfermidade

é bom e faz mal - saudade.





Até Logo


- te amo; - eu também, do fundo do coração

Os olhos se fecham

e as almas se vão.










Thuan Bigonha de Carvalho.

11 de mai. de 2011

O Medo do Escuro.



A cidade amanhecia como de costume. Num primeiro plano, perto das três da manhã, os galos afetados pela mudança do ambiente rural para o urbano começavam a cantar. Lentamente, com o aproximar das seis horas da manhã, as luzes dos postes já apagadas pelo sol, a cidade ia se levantando com seus habitantes, lançando sua miscelânea de sons, cheiros, sabores e suores ao ar.



O dia transcorria, e não poderia ser diferente, como de costume. Todos são corajosos durante o dia. Pessoas conversam, riem, buzinam, discutem, dizem, são. No entanto, a maioria dessas pessoas era consumida pelo trabalho, e via o dia passar, como veremos agora, num piscar de olhos.



E então, inegável que só ela, surgia a noite. Vale ressaltar que a noite da qual falamos não é uma noite normal. Hoje a noite não tem luar, nem estrelas, somente nuvens cor de chumbo tapando o céu, quase invisíveis, mas extremamente ameaçadoras. Invariavelmente, as luzes dos postes piscavam, fazendo com que a maioria das pessoas, aquela mesma maioria que deixou o dia passar num piscar de olhos, acelerasse o passo em direção à própria casa. É, esse é o medo de escuro.



E de repente ele vinha.



A passos lentos com seus pés tamanho quarenta, aproximadamente, ele vinha quase num arrasto, parecendo que flutuava. O corpo estava ligado por espécies de fios luminosos, e seus braços torneados permaneciam incólumes naquela expressão de puro vigor. Sobre a cabeça, uma coroa que refulgia mesmo na ausência de qualquer luz externa. Os ouvidos mais aguçados do que o de costume, a boca frouxa expressando tranquilidade, o olfato notoriamente dilatado, e os olhos, a fonte de toda aquela luz, abertos numa intensidade inalcançável, parecendo enxergar além das nuvens que acortinavam o infinito. O som que produzia era o de uma espécie de flauta, que saía naturalmente de cada poro de seu corpo. Seus movimentos eram completamente desordenados, uma desordem quase proposital, dando a impressão de que o ser se alinhava ao eterno desalinho. Tudo ali era uma espécie de harmonia contagiosa, e cada pedaço da natureza que rodeava aquele ser fazia-se prisma, refletindo imediatamente aquela luz, e fazendo com que o escuro recuasse cada vez mais... cada vez mais ........cada vez mais ......................cada vez mais...




Pois quem carrega a eternidade consigo jamais conhecerá o medo de escuro, mas fará com que o escuro reconheça seu próprio medo:


A Luz.






Thuan Bigonha de Carvalho

9 de mai. de 2011

parabéns, parabéns.



Existe na vida uma profissão


Que se equipara a um protetor de jardins


Mas nela se usa mais o coração


Do que em qualquer outro labor e afins.




A profissão em questão não se ensina


Nem se aprende durante o caminho


É um dom que carregas, menina


Esse cuidado com todo o teu ninho.




Abrir mão de tua própria vida


É tarefa muito da arriscada


Fazer tua vivência sofrida


Romper flores de uma margarida


Só pra ver os teus filhos na estrada.




Com a filha mais velha, desde cedo


Tens um zelo de se invejar


Portando-te feito um rochedo


Não deixando que ela tenha medo


De viver – pois viver é sonhar.



Para o filho mais novo és o herói


A referência na educação


Saiba que crias bem teu cowboy


E eu sei que é em ti que dói


Quando a saúde dele entra em questão.



Com o do meio tens o maior cuidado


Pois é o filho que não está mais em casa


E mesmo que ele esteja errado


Cuidas sempre de ficar do seu lado


Evitando limitar suas asas.




E então hoje, dia oito de maio


Dia em que finalmente a ficha cai


O dia das mães veio e entrou de soslaio


A gratidão descerá como um raio


E trará você, que já nasceu mãe e pai.






Thuan Bigonha de Carvalho

26 de abr. de 2011

Desperdida




A tarde avançava penosa, sem chuva e sem prosa, arrastando o dia


As horas - não queria ver, evitava saber! - mas ele já sabia


E junto ao clamor do coração, junto a toda a paixão, junto a toda magia


Junto ao outono que proclama o inverno, seu momento eterno lento se esvaía.





A sensação apertava seu peito, mas não tinha jeito, era a despedida


Por mais que o rapaz quisesse, com choro ou com prece, não tinha saída


Chegou a perder o respeito, bradou de mau jeito, contra a própria vida


E o tempo, mentor da quermesse, bradava: “se apresse!”, vou dar a partida.




Iansã, quão covarde e difícil é largar o meu vício por ter que partir!


Depois de tanta intimidade, lascívia, vontade que não vai sumir


Meu corpo em seu corpo era bruma, sereno e espuma, magos do porvir


E agora sou como orvalho que nasce do galho e não quer mais cair





Aquele momento infinito, cigano erudito, gravara-se a fundo


O amor sublimou tão sagrado, carícia e agrado, poema fecundo


E aquilo era contradição, pois seu coração comungava com o mundo


Mas já quando estrada pegava a saudade apertava no mesmo segundo.





Então toda aquela bonança ao virar lembrança era um tormento


Ele clamava sua Deusa de fogo - seu carma, seu jogo - no mesmo momento


E os Deuses se deliciavam porque se gabavam saber seu intento


E faziam se encontrar novamente, regavam a semente daquele amor violento.





O reencontro não era normal, o plano era astral, como antigamente


Quando os reis temiam pela magia, o padre só dormia com a igreja silente


Mas para ambos era o bastante, ele anjo errante ela estrela-cadente


Guiados pela coincidência, prazer da existência, num mundo doente.




A compreensão logo o tocou, seu corpo levou um pequeno recorte


E ele então se acalmava, não mais reclamava da falta de sorte


Sabia que mais cedo ou mais tarde a sua metade viria a pinote


E surgiria vestida de lua, tal qual alma nua, pra seu Dom Quixote.





Thuan B. Carvalho

28 de mar. de 2011

A luz na janela


Caminhava sem pressa numa tarde fria


A paz acossava de forma que eu ria


Estava tão só que eu nem sei se existia


Da luz da janela acesa eu a via.




Sem pestanejar, ela se despia


Girava, dançava e se sacudia


O drama em seus olhos, latente, doía


Da luz da janela a lágrima escorria.




Eu me perguntava: aonde ela ia?


Qual era o motivo que a impelia?


Solitária como eu, mas não se escondia!


Da luz da janela ela me confundia.




Ela me encarou, criador e a cria


Por trás de seus olhos a alma gania


De pronto içou vôo, perfeita poesia


A luz da janela lenta se esvaía




Então penetrou na frieza tardia


Seu doce sorriso de longe se ouvia


Compreensão me tocou; existiu - foi magia


E a luz se apagou (mas eu incandescia).


Thuan Bigonha de Carvalho

24 de mar. de 2011

Paulo Paulatino


Esse senhor que não vê minha pressa

Como pode lentidão como essa

Ante a vida que ruge entre nós?

Tento então, ágil, me esquivar

Mas meu caminho ele torna a fechar

Num gingado tal qual valsa a sós.



Vejo assim, como única opção

Dessa minha enorme pressa abrir mão

E a passos lentos fico a observá-lo;

E quando estou acompanhando seu ritmo

Sinto algo se alterando em meu íntimo

De modo que abismado eu me calo.



O sol incide em seus brancos cabelos

O impacto ouriça-me os pêlos

A realidade me fura como espinho;

E ao mirar a sombra daquela imagem

Ainda não sei se concreta ou miragem

Reparo que o senhor não vai sozinho.



O tempo vai caminhando consigo

Ele até o chama de amigo

Afinal, quanta intimidade!

E o chão TOCTOCando a bengala

Lento como o bocejo que se exala

Enquanto Paulo Paulatinava a cidade.


Thuan B. de Carvalho

2 de mar. de 2011

Equilíbrio dos Mundos.


O ar trancafiado nos pulmões, por um breve instante, e depois sendo solto com desenvoltura invejável.



Aquele era um movimento constante naquela fração de segundo em que o equilibrista içava seu corpo galgaz para frente, cobrindo cada vez uma parte maior da pequena corda bamba sobre a qual caminhava.

A respiração, que fluía em seu corpo como bolero, era movimento raro na platéia. As pessoas encaravam aquele desafio às leis da gravidade com tamanha perplexidade que nem sequer se davam conta de inalar o ar ambiente, mistura homogênea de suspense, apreensão e paz.

E o artista seguia, pé ante pé, com maestria. E recebia aquela sensação conhecida, que só tal adrenalina era capaz de produzir. Nascera para aquilo.


Era como se sua existência fosse justificada. Atrevia-se a fechar os olhos, e deixar o corpo seguir, enquanto o sentimento de êxtase dominava seu corpo e acolhia sua alma. E então ele a ouvia.


O vazio era preenchido por sussurros em sua mente, que ele sabia ser de si. Eram afagos e suspiros satisfeitos misturados com aplausos alegres. Experimentava a ligação entre os mundos, e a abraçava como aquela experiência merecia.



E dentre os cem membros da platéia, apenas as vinte e seis crianças menores de quatro anos e aquela senhora de sobretudo verde conseguiam ver que, o que na verdade amparava o artista por sobre aquele pequeno fio da vida, não era o seu equilíbrio; e sim suas enormes, saudáveis e coloridas asas.



Thuan B. Carvalho

15 de fev. de 2011

Valsa em cores.


Quando ela me vem, alva

meatropelameafoba e seduz,

Me tira da solidão, me salva

e caminha de volta para a luz.


Vem tão branca que a Lua se ouriça

ao ver concorrente à altura

Então ela, ávida, se espreguiça

mas não consegue atingir tal candura.


E se ela aparece amarela

contra a sombra da minha janela

nem assim o medo me desperta.

Pois qualquer cor pode ser a cor dela

camaleão que fugiu d’uma tela

e me espia da cortina entreaberta.


E se negra ela vem, ao crepúsculo

dou-lhe astros e estrelas-cadentes

O estupor me retesa o músculo

e as noites se fazem mais quentes


E tão bem ela se porta de céu

que, intrigado, fico a pensar:

Seria o detalhe negro do chapéu

sua pele a se prolongar?


N’outro instante ela gira e é morena

caminhando ao chacoalhar da melena

pele jambo de sol e de sal

E na minha direção vem, serena

estendendo sua mão tão pequena

um segundo de eterno carnaval.


Thuan B. Carvalho

10 de fev. de 2011

Você acredita?


- Pronto general, vencemos! Agora voltaremos em paz para nossa terra, vitoriosos, ao braço de nossa família! - proferiu entusiasmado o soldado.


- Errado, soldado. Estamos apenas começando. Vencemos essa batalha, mas pelo visto teremos outras pela frente. - retrucou sorridente o general, tocando o leme do navio em que estavam.


- Mas general. Já conseguimos o que queríamos. Só haverá mais guerra se quisermos. E sobre o discurso de paz? - indagou o soldado, contrariado.


- Bom, foi realmente um discurso motivante. Eu quase acreditei nas minhas palavras. Mas responda, soldado. Intimamente: você acreditou? Você realmente acredita na paz? Acredita que algum dia pararemos de guerrear, pararemos de querer um pouco mais, deixaremos que a humildade freie a ganância? OLHE PARA MIM, SOLDADO! Você se imagina num mundo alegre, onde as pessoas se cumprimentam, onde a tristeza é passageira, onde não existe a guerra e a paz reina? ESSE MUNDO NÃO EXISTE, SOLDADO! Agora responda, RESPONDA! O que importa mais, uma condecoração momentânea, um sopro de poder sobre seus ombros, ou a paz? O príncipe nos receberá com festa, o mundo inteiro saberá nosso nome. Somos os homens que sobreviveram. E nas próximas guerras, todos nos temerão. Continuaremos essa guerra para sempre, tomando, quem sabe, todas as terras do mundo! Será uma guerra contra o mundo! É assim que funciona a mente de um general. Por isso você é soldado e não eu. Eu penso alto. Eu sei lidar com momentos de vitória e derrota. Então reflita, soldado. Reflita bastante, e responda: VOCÊ OUSA ACREDITAR NA PAZ?


Mas o soldado já havia refletido.


Retirou tranqüilo uma granada que sobrara de seu colete, e ergueu-a no ar. Retirou o pino como se aquilo fosse a coisa mais calma do mundo; e, antes de soltá-la sobre o navio e destruir tudo e todos os que haviam restado da guerra, sussurrou:


- Sim, eu acredito.



Thuan B. Carvalho

30 de jan. de 2011

Sem lenço e sem documento.


Caminhavam não se sabia há quanto tempo. Só se sabia que caminhavam; e que não se falavam.


O sol subia paulatino sobre a linha do horizonte enquanto as nuvens, que trouxeram o negror da noite de outrora, desfaziam-se levemente naquela agradável alvorada litorânea. Caminhavam um ao lado do outro, deixando as pegadas frescas na areia, que as ondas leves tratavam de apagar no instante seguinte. A água trazia-lhes uma sensação agradável aos pés, enquanto procuravam conchas. É, isso mesmo. Conchas.

Ela vinha à frente, agachando-se de hora em outra, e levantando-se em seguida com um punhado de pequenas conchas nas mãos. Ele vinha sempre dois passos atrás, trazendo um pequeno balde, onde depositava as conchas que ela lhe passava.

O único toque dos dois, durante todo o percurso, era aquele. Mãos sobre mãos, passando as conchas. E não se falavam. Desde que começaram a caminhar, naquela espécie de ritual, eles sequer se olhavam. Tinham as mentes vazias, os olhos perdidos entre tanta beleza mundana, e os pés pareciam caminhar sozinhos.

E lentamente o balde ia se enchendo de conchas, e todas pareciam seguir um mesmo padrão: eram diferentes.

E assim o tempo foi passando. O sol já havia expurgado qualquer nuvem do céu, que parecia refletir o mar de tão azul. E ambos caminhavam. Intrigante. Não diziam nada.


Então o balde se encheu, eles se olharam, sorriram, e se beijaram. E foi como se tudo já houvesse sido dito.


Thuan B. de Carvalho

17 de jan. de 2011

A Sina de George


George era covarde, e foi por isso que não conseguiu se suicidar.


O suicídio, em si, é o maior ato de covardia praticado por um ser humano, que simplesmente desiste, entrega os pontos, corta o fio da vida, extingue a chama de seu corpo - que nasceu para nunca se extinguir. Suicidar-se representa o fim crucial, o pedido de arrego, a cartada final de quem não consegue mais virar o jogo, o grito de covardia, a perda de uma chance.


Em pé sobre a cadeira de mogno em seu quarto, a corda fortemente enrolada sobre o pescoço, o rosto marcado por uma vida que não merecia ter sido recebida, ele olhava o retrato de seu avô a sua frente. Seu avô que lutara a guerra, que voltara sem uma perna, que vivera sete anos numa cadeira de rodas, mas que nem por isso tinha deitado sua alma no caixão do suicídio.


Suicidar-se, no entanto, em detrimento de ser um ato covarde, exigia coragem. E se o ato é o maior de covardia que pode ser praticado, a coragem exigida para a consumação é, concomitantemente, a maior. Puxar o gatilho, cortar o pulso, pular do prédio, chutar a cadeira, não importa. Qualquer desses atos exige o máximo de coragem existente no coração do ser.


E ali permaneceu George por extensas vinte horas, até que cortou a corda que envolvia seu pescoço, desceu calmamente de seu mortuário, e seguiu para fora de sua casa, sem ter coragem para sequer olhar no espelho e encarar a face debochada de seu outro lado, que zombava de seu ato covarde.


Caminhou pela praça procurando o sentido de sua vida, e não sentiu quando ele passou em forma de mulher ao seu lado, derrubando um lenço pardo que ele sequer teve a decência de pegar. Pensava agora em como conseguiria se suicidar, sem precisar ser corajoso.


Passaria todos os dias por Rita, filha do dono do mercado, sem reparar que sua alma trazia consigo o encaixe perfeito para a alma da moça.


E tentaria suicídio no outro dia, e no outro, e no outro, sem sucesso; porque jamais seria corajoso o bastante para executar um ato tão covarde.


Tratava-se, pois, da Sina de George, que não findaria nunca sua procura vazia, sua procura desnorteada, sua procura que, no fim das contas, tornara-se vã; já que por não saber o que procurava, jamais perceberia quando houvesse encontrado.



Thuan B. de Carvalho

10 de jan. de 2011

Nem tão certo, quanto o calor do fogo.


Dali de cima, a vista era tão quente quanto se poderia ser. Seus olhos curiosos percorriam cada esquina da pequena cidade que se lhe abria de sobre a sacada de seu apartamento módico na segunda avenida. Uma brisa quente transpassava-o, enquanto seu cotovelo esquentava a cada minuto sobre a pedra mal construída na beira da sacada.


Lá em baixo, lá onde a vida acontecia, o reflexo do sol incandescia pelo vidro dos carros, dando a impressão de que o calor era três vezes maior do que o era na verdade. E estava quente. Quente ao ponto de todos os pássaros que sobrevoavam aquele céu denso abrigarem-se sob uma enorme mangueira no centro da praça. Ali onde a vista alcançava, ele viu uma mãe carregar o filho de pés descalços no colo pelo asfalto, poupando-lhe as futuras e infalíveis bolhas.


A moça caminhava torpe, buscando a sombra das marquises, e o calor fez suas roupas tão curtas, que afoguearam os olhos do rapaz de sobre a sacada.


Seus olhos ardiam, seu cotovelo se abrasava, seu ombro inflamava, seus cabelos começavam a ficar mais claros, os pés guinchavam, os carros incendiavam, os pássaros conflagravam; e era impressionante como nada daquilo - nada daquela dança do fogo ao redor do astro-rei, nada daquela miragem da porta do inferno, nada daquele calor que consumia seu corpo - conseguia aquecer seu coração.


Thuan B. Carvalho