15 de jun. de 2011

Ordem e Progresso.




Amanhecia na Rua da Magnólia, e nem mesmo a mais otimista das senhoras, aquela que varria com os olhos a rua três vezes ao dia procurando algo sobre o que comentar - Dona Carmem - era capaz de imaginar o que ocorreria naquele Logradouro.



A Rua da Magnólia existia há pouco tempo, e suas singelas sete casas se espalhavam pela avenida de forma simétrica, uma de cada cor, completando a simetria com a igreja do finzinho da rua.



O ambiente todo, sem falar de uma forma resumida (mesmo porque não há possibilidade alguma de se resumir algo tão resumido), abrangia uma rua, sete casas, uma igreja, uma mercearia, uma banca, duas latas de lixo, uma sorveteria, uma “mini-praça” com três árvores, um canteiro e dois bancos, um correio, uma escola, um cemitério e um botequim.



Dona Francisca, moradora da imponente casa amarela, voltava da mercearia do seu Adão com uma sacolinha contendo três pães de sal e um saquinho de leite. Nhá Isaura varria a rua em frente a sua casa, preço a se pagar por ter o domicílio mais invejado da rua - a desejada casa verde -, que ficava de frente para a praça. “Vô Lauro”, morador da casa azul, já lia o jornal matinal de dentro da sua banca, enquanto sua esposa, Dona Gilda, arrumava-se impecavelmente para a missa das sete. Dona Carmem, viúva com cinco filhos, tomava seu chá da janela branca de sua casa alaranjada; enquanto seu filho mais velho, Joaquim, abria o ruidoso portão do correio que administrava desde a morte de seu pai, Antônio. Gertrudes, mulher de Seu Adão, regava cuidadosamente o jardim nos fundos de sua casa rosa, e falava alegremente ao telefone com Cláudia, sua irmã tão bem falada, que ainda nova recebeu um convite para ser atriz de cinema, indo morar na cidade grande desde então. Padre Honório, que morava nas dependências da igreja, acabava de levantar-se da primeira oração do dia, e ajeitava o local para a missa de logo mais. Heloísa, anfitriã da casa vermelha, dormia a sono pesado, enquanto seu marido, José, já servia a primeira dose de pinga para Seu Zito, o andarilho que dormia num dos bancos da praça desde que a Rua da Magnólia se entendia por rua. Jorge, morador da casa branca, assim como Heloísa, dormia, pretendendo abrir sua sorveteria apenas depois das nove da manhã.



As coisas aconteciam como todo dia, e se um quadro fosse feito da Rua da Magnólia às seis da manhã, ele se confundiria facilmente com a morosidade da realidade, que se diferenciava a cada amanhecer apenas pela quantidade de folhas que caía das árvores. Assim, tal pintura traria em si a beleza morna de uma rua pacata, a serenidade inerente à simplicidade. Até o derradeiro dia oito de agosto.



O barulho ensurdecedor interrompeu toda a magia daquela manhã ensolarada de domingo, fazendo com que toda a rua permanecesse estática por um breve minuto, e no minuto seguinte, todas as cabeças da cidade se voltavam para o centro da praça, de onde subia uma fumaça cinzenta, com cheiro de enxofre.



Dona Carmem, o olhar atento, a certeza de que aquilo certamente renderia ainda mais assunto do que sua suspeita de que Dona Gilda tinha um caso com o Padre Honório, apressou-se à beira da cratera, seguida apenas por Latido, o cãozinho que acompanhava Seu Zito em suas madrugadas na rua. Lentamente, todos os moradores da Rua da Magnólia se aglomeravam ao redor daquele incidente incomum, esperando a fumaça se dissipar para poder ver o que diabos era aquilo. Padre Honório encontrava-se ajoelhado, seu terço firmemente seguro nas mãos, e nos olhos a certeza do fim do mundo, previsto e anunciado para aquele ano por Dom Célio.



Minutos se passaram até que toda aquela tensão se fosse, e a fenda revelou finalmente sua causa: uma caixa simples de madeira, já aberta, contendo uma espécie de máquina. Após calorosa discussão, Seu Zito foi chantageado a descer e pegar o objeto, sendo a ele prometida, por isso, uma garrafa inteira de pinga. Zito desceu no ato, trazendo a caixa para o banco da praça. Do lado de fora, lia-se:




“Vcs akbam de ganhar um passaporte para o futuro. Nessa caixa tá a eficiência junto com a facilidade, pra q vcs ñ precisem mais se estressar, se preocupar, pq ela reduzirá o tempo p/ vcs, e trará mta felicidade e conforto a tds!”




Em apenas um mês, a sorveteria virou lan house, a banca virou Mc Donald’s, o correio faliu, a mercearia virou supermercado, o cemitério precisou de alguém que o administrasse e de mais dois funcionários, o botequim virou boate, a praça ganhou um policial, as árvores viraram eucalipto, Seu Zito foi preso, Padre Honório começou a aceitar em sua igreja apenas quem estava em dia com o dízimo, as casas foram pintadas todas de marrom, a escola ganhou um diretor - Sr. John -, que trouxe consigo da cidade uma imobiliária e uma indústria automobilística, Dona Carmem tornou-se prefeita, seus cinco filhos tornaram-se vereadores, Latido foi atropelado, “Vô Lauro” morreu de Leptospirose, seu filho morreu de cirrose, seu neto morreu de overdose; e a Rua da Magnólia, que num presente não muito distante cheirava a lavanda, passou a ter um cheiro acre de enxofre, inevitável fragrância do futuro.



“mas não se preocupe, você se acostuma!”, dizia todos os dias o homem, o Deus de terno e gravata que fazia sua voz reverberar de dentro daquela misteriosa caixa...




Sabia das coisas, o velho Dom Célio.





Thuan Bigonha de Carvalho

Nenhum comentário:

Postar um comentário