30 de jan. de 2011

Sem lenço e sem documento.


Caminhavam não se sabia há quanto tempo. Só se sabia que caminhavam; e que não se falavam.


O sol subia paulatino sobre a linha do horizonte enquanto as nuvens, que trouxeram o negror da noite de outrora, desfaziam-se levemente naquela agradável alvorada litorânea. Caminhavam um ao lado do outro, deixando as pegadas frescas na areia, que as ondas leves tratavam de apagar no instante seguinte. A água trazia-lhes uma sensação agradável aos pés, enquanto procuravam conchas. É, isso mesmo. Conchas.

Ela vinha à frente, agachando-se de hora em outra, e levantando-se em seguida com um punhado de pequenas conchas nas mãos. Ele vinha sempre dois passos atrás, trazendo um pequeno balde, onde depositava as conchas que ela lhe passava.

O único toque dos dois, durante todo o percurso, era aquele. Mãos sobre mãos, passando as conchas. E não se falavam. Desde que começaram a caminhar, naquela espécie de ritual, eles sequer se olhavam. Tinham as mentes vazias, os olhos perdidos entre tanta beleza mundana, e os pés pareciam caminhar sozinhos.

E lentamente o balde ia se enchendo de conchas, e todas pareciam seguir um mesmo padrão: eram diferentes.

E assim o tempo foi passando. O sol já havia expurgado qualquer nuvem do céu, que parecia refletir o mar de tão azul. E ambos caminhavam. Intrigante. Não diziam nada.


Então o balde se encheu, eles se olharam, sorriram, e se beijaram. E foi como se tudo já houvesse sido dito.


Thuan B. de Carvalho

17 de jan. de 2011

A Sina de George


George era covarde, e foi por isso que não conseguiu se suicidar.


O suicídio, em si, é o maior ato de covardia praticado por um ser humano, que simplesmente desiste, entrega os pontos, corta o fio da vida, extingue a chama de seu corpo - que nasceu para nunca se extinguir. Suicidar-se representa o fim crucial, o pedido de arrego, a cartada final de quem não consegue mais virar o jogo, o grito de covardia, a perda de uma chance.


Em pé sobre a cadeira de mogno em seu quarto, a corda fortemente enrolada sobre o pescoço, o rosto marcado por uma vida que não merecia ter sido recebida, ele olhava o retrato de seu avô a sua frente. Seu avô que lutara a guerra, que voltara sem uma perna, que vivera sete anos numa cadeira de rodas, mas que nem por isso tinha deitado sua alma no caixão do suicídio.


Suicidar-se, no entanto, em detrimento de ser um ato covarde, exigia coragem. E se o ato é o maior de covardia que pode ser praticado, a coragem exigida para a consumação é, concomitantemente, a maior. Puxar o gatilho, cortar o pulso, pular do prédio, chutar a cadeira, não importa. Qualquer desses atos exige o máximo de coragem existente no coração do ser.


E ali permaneceu George por extensas vinte horas, até que cortou a corda que envolvia seu pescoço, desceu calmamente de seu mortuário, e seguiu para fora de sua casa, sem ter coragem para sequer olhar no espelho e encarar a face debochada de seu outro lado, que zombava de seu ato covarde.


Caminhou pela praça procurando o sentido de sua vida, e não sentiu quando ele passou em forma de mulher ao seu lado, derrubando um lenço pardo que ele sequer teve a decência de pegar. Pensava agora em como conseguiria se suicidar, sem precisar ser corajoso.


Passaria todos os dias por Rita, filha do dono do mercado, sem reparar que sua alma trazia consigo o encaixe perfeito para a alma da moça.


E tentaria suicídio no outro dia, e no outro, e no outro, sem sucesso; porque jamais seria corajoso o bastante para executar um ato tão covarde.


Tratava-se, pois, da Sina de George, que não findaria nunca sua procura vazia, sua procura desnorteada, sua procura que, no fim das contas, tornara-se vã; já que por não saber o que procurava, jamais perceberia quando houvesse encontrado.



Thuan B. de Carvalho

10 de jan. de 2011

Nem tão certo, quanto o calor do fogo.


Dali de cima, a vista era tão quente quanto se poderia ser. Seus olhos curiosos percorriam cada esquina da pequena cidade que se lhe abria de sobre a sacada de seu apartamento módico na segunda avenida. Uma brisa quente transpassava-o, enquanto seu cotovelo esquentava a cada minuto sobre a pedra mal construída na beira da sacada.


Lá em baixo, lá onde a vida acontecia, o reflexo do sol incandescia pelo vidro dos carros, dando a impressão de que o calor era três vezes maior do que o era na verdade. E estava quente. Quente ao ponto de todos os pássaros que sobrevoavam aquele céu denso abrigarem-se sob uma enorme mangueira no centro da praça. Ali onde a vista alcançava, ele viu uma mãe carregar o filho de pés descalços no colo pelo asfalto, poupando-lhe as futuras e infalíveis bolhas.


A moça caminhava torpe, buscando a sombra das marquises, e o calor fez suas roupas tão curtas, que afoguearam os olhos do rapaz de sobre a sacada.


Seus olhos ardiam, seu cotovelo se abrasava, seu ombro inflamava, seus cabelos começavam a ficar mais claros, os pés guinchavam, os carros incendiavam, os pássaros conflagravam; e era impressionante como nada daquilo - nada daquela dança do fogo ao redor do astro-rei, nada daquela miragem da porta do inferno, nada daquele calor que consumia seu corpo - conseguia aquecer seu coração.


Thuan B. Carvalho