19 de dez. de 2009

O Espelho das Almas







(...) E na indicação da décima primeira casa, finalmente os olhos do totem faiscaram em direção ao garoto que se encontrava diante daquele grande senhor de barbas brancas, segurando uma bacia. O templo começou a tremer sob os pés de Abaetê, mas como olhava para o ancião, que permanecia impassível, conseguiu manter a calma e não abdicar daquele momento. A magia amedronta.
~~Não era um templo qualquer, por não se tratar, analogicamente, de um momento qualquer. As dezessete vigas espalhavam-se harmonicamente, apesar do número ímpar, dando a impressão de que o piso estava flutuando sob o rio. Na subida, um caminho levemente inclinado, incrementado com rosas e bromélias, sendo o aroma agradável sentido até dos lugares mais distantes, como a casa de Abaetê. Vale ressaltar, ainda, que não se tratava de um garoto qualquer. A pele morena de sol, olhos negros e penetrantes, sobrancelhas espessas e bem desenhadas, lábios cheios e o nariz centralizado, davam ao garoto um aspecto indígena, enquanto o corpo ainda esguio conferia-lhe exatamente a idade que tinha: quatorze anos. Trajava um humilde sobretudo cinza, que cobria os pés descalços, a bermuda suja e a camisa esfarrapada. Porém, o excesso de humildade era compensado pelo olhar.
Desde o começo Lecter já havia pressentido o julgamento astrológico, pois a partir do momento que recebeu aquele olhar penetrante de Abaetê, sentiu-se despido, como se sua alma falasse diretamente ao garoto, sem que precisasse sua boca proferir qualquer frase coesa ou coerente.
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~~Abaetê encontrava-se no centro de uma circunferência de pedra, eximiamente desenhada na ala esquerda do templo; mantinha o braço esquerdo na direção da lua enquanto o direito, agora, apontava ao número onze. Os cinco dedos da mão direita continham leves sangramentos, feitos pelo ancião Lecter, na introdução do ritual. À simples faísca emitida pelo totem, uma mulher ruiva, extremamente branca, com os olhos verdes e estáticos, despida da cintura para cima, trajando apenas uma tanga branca, tão branca como a lua, veio na direção do garoto, trazendo uma jarra de água nos braços levemente torneados. O garoto permanecia atônito, o pulso fraco e esbranquiçado, ainda apontando na direção da mulher, que parecia não ter feições. Ao chegar à frente dele, a ruiva virou a jarra que trazia sobre a cabeça do garoto, revirou os olhos nas órbitas, e começou a proferir: “O mundo é bom, Abaetê!Acredita no mundo!Você foi abençoado com o otimismo e a inteligência, usa Abaetê!Bebe dessa água, não deixa gota escapar. Tem gente que morre de sede, homem!SEJA HOMEM ABAETÊ!As águas de Aquário são puras, são puros os Aquarianos. Leva o ensinamento do passado ao futuro, ensina o homem a conviver com a natureza; não se imponha com sua crença, aprende que o destino é o mesmo pra qualquer caminho! Aceita o seu caminho, Abaetê, sem aceitar o seu destino calado!(...).” Enquanto ela gritava essas palavras, o garoto lutava contra as águas que jorravam sobre sua cabeça, tentando respirar, mas sem obter êxito. A mulher permanecia com uma das mãos, incrivelmente forte, empunhando a jarra, enquanto a outra, sutilmente, riscava o próprio pescoço com marcas profundas, que sangravam o chão. “(...) verdade não tem, pessoa só mente, o mundo que vem, é um mundo doente. Você tem a cura, saracura! Não dê as costas ao que importa, nem se esqueça de sair ao luar. A chuva é a energia renovadora dos céus, que cai somente para refrescar, e a Lua é seu astro fundamental, controlador de marés, e controladora de você! Importe-se com o que sentir, já que a matéria é vã, enquanto a loucura é sã! Egoísmo e Orgulho são seus rivais, Abaetê; não se deixe abater! Vai pro mundo de gente maluca, criança caduca, que gosta de dor; aprende a apanhar de luva, agradeça pela chuva, aprecie o calor! (...).”
~~Lecter fechou os olhos, sentindo a inquietude dos olhos do garoto em sua própria alma, e temeu o pior. Abaetê fraquejou e caiu de joelhos, enquanto aquela jarra, misteriosa como a si só, não parava de criar água para jogar sobre ele. Seu pulmão não fazia mais o movimento de inspirar e expirar, e a água que escorria no chão aos seus pés misturava-se com o sangue da profetiza e com seu próprio sangue, formando um líquido vermelho claro e pouco denso. Num último momento, Abaetê levou a mão direita ao cordão que carregava no pescoço, laçado a um dente legítimo de tubarão, presente da avó; enquanto a mão esquerda continuava a apontar para a lua, mas agora, e nem ele saberia explicar o motivo, tal mão formava uma concha, como que numa súplica. A cena era lacrimejante e mística. “(...) O amor vai ser sua perdição e sua dádiva, menino-água. Com o poder de assumir formas sem perder a consistência, vai ser amado por quem ama, mas não mais do que a liberdade. VAI SER SOLITÁRIO, ABAETÊ! Solidão é boa, faz pensar. Vai querer um mundo melhor, Abaetê...mas não vai ter!Vai querer não pensar, só amar, Abaetê...mas não vai poder! Vai chorar com seus irmãos, menino-natureza. SEUS IRMÃOS CAÍDOS NO CHÃO, SEM FUTURO E SEM DESTINO. CHORA POR ELES, ABAETÊ! Apesar disso tudo, injusto mundo, vai levantar com o sol e o sorriso, menino-sofrimento! Não vai ter medo de cruz, vai sorrir pro inferno, vai queimar o pão que o diabo só conseguiu amassar! E sorrir, Abaetê. Vai sorrir como se quisesse mostrar pra pessoa que O MUNDO É BOM. E ele é. É bom porque você respira, porque tem mãe lua, banheira mar, vida sol, flor beleza, cheiro árvore, bicho amizade. Seu olho é duro como faca, Abaetê! Descobre quem tem fome, pergunta pra alma! Seus olhos enxergam além do que se diz, menino-observância. Ninguém mente com a alma, aproveita! Conquista!”
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~~Dizendo a última palavra, a ruiva caiu ao chão, misturando-se ao sangue e à água, sendo carregada pela fina correnteza que havia se formado, voltando em direção ao totem, de onde havia saído inicialmente. Abaetê encontrava-se fatigado, joelhos ainda ao chão, mas notava-se um leve subir e descer de veias em seu pescoço, sinal da vitalidade. O menino levantou-se, e sentiu queimar o braço, quando notou uma cicatriz que antes não havia. Era uma mulher carregando uma jarra. Passou a mão levemente pelo contorno da imagem no braço, enquanto sentia que a lua não mais o acompanhava, sendo que pingos de chuva caíam levemente, sobre sua cabeça. Ergueu os dois braços, e dançou. Dançou porque queria, porque ouvia os sons do mundo, porque sentia fluir-lhe uma energia que tinha que ser gasta. Dançou porque tinha a energia do céu. Em seguida, tomou o anel prateado das mãos de Lecter, e inclinou-se para descer as escadas do templo. Foi quando parou.
~~Como havia sido professado, ele podia realmente ver a alma pelos olhos. E quando olhou, de cima do templo, para o mundo abaixo de si, notou que a alma do mundo chorava.
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Thuan B. Carvalho
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Bom, deu vontade de falar sobre mim. Floreei. =]

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